Carta a Maurício, meu tradutor predileto

Júlia Grilo
4 min readOct 11, 2023

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“O Balanço”, Fragonard (1766)

Gosto de ser tiete. Um passado meio groupie me assombra; adoro quando as minhas obsessões encontram lugar. Sublimadas, escoam-se dentro de uma ordem, com margens muito atravancadas, permitindo que eu possa existir em paz: tudo bem que eu exagere, o mundo é mesmo exagerado, há ídolos por toda parte. Eu gosto de Kim Kardashian, ela parece utilizar-se tão bem de suas obsessões. Quero aprender a fazer dinheiro — sou meio soteropolitana e meio ameliense, mas também pertenço a Feira de Santana —, a lógica dos comerciantes me interessa; admiro muito quem alcança o vulgar. Tenho vergonha de admitir, mas ainda sou apaixonada pelo Alex Turner de 2009. Tenho vergonha de admitir, mas sou fã de Mauricio Santana Dias, porque ele traduz a minha escritora favorita e eu sinto que ele o faz só para mim. Elena Ferrante é novelesca, é vulgar, e eu a adoro por isto.

Maurício descobriu em Cães um segredo do qual ninguém desconfiava. Numa carta, eu lhe escrevi:

<adolescência>
de: Júlia Grilo <juliamorimgrilo@gmail.com>
para: Mauricio Santana Dias
data: 27 de set. de 2023, 01:04
assunto: Re: adolescência
enviado por: gmail.com

Maurício,

Acho que superestimo a verdade. Tenho dificuldades para me levar a sério, mas estou começando a caminhar em direção a isso — agora, uso roupas adequadas, longas e amenas; também faço penteados no cabelo –, e passo a reivindicar os signos da adultez. É difícil me levar sério como profissional que atua em nome de uma ética e através de um ofício — mal consigo dizer em voz alta: sou psicóloga! –, é difícil me levar a sério como gente (me dou conta agora de como é óbvio que toda aquela ladainha sobre Cafeína se tornar gente era na verdade sobre mim). O meu namoro com Marcelo, a chance breve que tive de escapar de mim, me fez perceber que as minhas obsessões estão todas muitíssimo evidentes. Aparecem e despudoradamente se colocam à mostra: há muito tempo, sou obcecada pela descoberta da lógica que mantém o mundo em pé, do funcionamento íntimo das coisas. Quero remonta-las, passo a passo, como quem cuida de um relógio. O tempo mesmo pouco importa; apenas o conhecimento do mundo importa, não o que se passa com ele. Quando digo isto, me levo a sério — considero que existo, eu, Júlia, isso tudo, esse contínuo que reúno em meu nome. É preciso se levar muito a sério para existir: nós existimos no passado, no presente e no futuro.

Nem sempre consigo pensar assim. Na maioria das vezes, me vejo reduzida, unidimensional. Uma chatice literal: comprimida, lisura sem fim. A minha depressão, que se arrasta em mim desde os quinze anos, institucionaliza a minha desinstitucionalização. Fico alheia ao mundo. Ainda assim, não deixo de acreditar nele — não sou relativista, penso que a realidade seja apreensível; um dos textos mais importantes da minha graduação foi o prefácio “Fenomenologia da Percepção”, de Merleau-Ponty, para o qual as essências estão repostas na existência. Colei grau semana passada, e estava rascunhado um anteprojeto de mestrado, por isso lembrei de você.

Tive muita dificuldade para concluir este e-mail. Comecei a escrever assim que você me respondeu, mas me sentia mais ridícula a cada tentativa de finalizá-lo. Esses dias eu estava jogando sinuca com uma amiga enquanto lhe contava da minha relação com Lila, e ela me falou, meio blasé, que não se sentia identificada assim com personagem algum. Ela é mais velha e é a ex-namorada de um cara por quem fui apaixonada mas não quis me namorar, então suponho que ela saiba mais do que eu. Minha relação com Lila é meio idiota. Nós nos confundimos de tão semelhantes; é nela que eu me encontro de maneira mais digna. Nas várias vezes em que eu me vi desfigurada, desconexa, quase inamável, Lila tornou-me possível; com ela, a minha existência passou a se apresentar de forma célebre e comovente, e eu pude existir da maneira que existo. Com ela, os ruídos da minha extensão deixam de ser qualquer coisa que não aspectos inevitáveis da dignidade que há em tudo que existe profundamente. Isso não é idiota, essa coisa de ser fã? Quando fiz dezessete anos, passei a ir a todos os festivais da cidade, e adorava tietar as minhas bandas favoritas. Fiquei amiga da maioria delas, num ensejo meio groupie. Hoje, não me vejo mais assim, nas grades de um palco.

Ainda quero aprender a esmiuçar a realidade. Do realismo literário da escola veio a confirmação de que estudaria Psicologia. Durante a minha vida inteira eu pensei que somente os adultos eram capazes de conhecer a verdade; o mundo deles me parecia um clube místico, secreto, dentro do qual as mais importantes decisões eram debatidas com clareza antes de serem impostas e respeitadas; uma ágora esplendorosa. A infância significou para mim a impossibilidade, e a minha adolescência foi quase toda maculada pela névoa nauseante dos meus primeiros episódios depressivos. Profundamente deprimida, fui engolida por uma espécie de fantasia macabra, extensos sonhos de chumbo que me afastavam do mundo real. Deixei de enxergar, e a avaliação que eu fazia de mim e do mundo tornou-se permanentemente negativa. Adolescentes são dramáticos e se apaixonam e crianças são bobas e infantis, mas os adultos não: os adultos conseguem se orientar sozinhos, localizando-se com precisão.

Pois é, minha relação com Lila é assim, cheia de encantamento. Constrangedor.

Júlia

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