Carta a Renata

Júlia Grilo
2 min readSep 28, 2024

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A grotesque old woman — Quentin Matsys

Renata,

você me escreveu há quase dois anos. Acho que esta é a primeira vez que eu demoro tanto assim para responder uma carta; costumo ser uma emissária ansiosa, cheia de coisas a dizer, prestes a sufocar meu interlocutor com os meus excessos. Gosto muito de escrever cartas, as amizades epistolares me deliciam. A carta (ou o e-mail, né? Sou #GenZ) é o meu gênero literário favorito, acho que porque a crônica é a minha língua-mãe. Comecei a escrever assim, registrando o mundo. O ensaio, que também adoro, é uma crônica que decantou, e a carta é uma crônica com destino: todos são constituídos de impressões da realidade, são relatos em tempos diferentes, e ainda assim relatos. O relato é uma tentativa, nunca um dado, o que me alivia — fico feliz que o mundo seja insubstituível.

O mundo é um excesso; eu também. Às vezes estou fora dele, às vezes sou retida por ele, às vezes esqueço que sou uma mulher, mas ele me lembra disso. Tenho sofrido bastante a minha condição nos últimos dias. Descobri que era mulher quando fiz sexo pela primeira vez, e nunca deixei de ser punida por isso, por ser uma mulher. Uma mulher com ares de melhorzinha, uma mulher com ares de mulherzinha. Odeio a impossibilidade, a negação. Mães não são mães sem o sexo; mães são feias, horrorosas, e eu gosto da feiura: da beleza da feiura, da deformidade que engendra a forma. Gosto da beleza também.

A sua beleza não me choca, Renata, mas tenho a impressão de que ainda lhe causa algum espanto. Não tenha medo de ser bonita,

Júlia

Esta é uma resposta à escritora Renata Belmonte, que me escreveu uma carta em novembro de 2022, após o evento Um Grande Dia para as Escritoras.

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